Tchau, Querida
Direção: Gustavo Aranda e Vinícius Segalla (2018)
Uma declaração de amor à democracia, por Renata Romero
Ronda pelos acampamentos polarizados, por Carlos Alberto Mattos
Uma experiência angustiante, por Gustavo Aranda
Uma declaração de amor à democracia
por Renata Romero
Após 14 anos de governo do PT, o Brasil passou por um dos momentos mais complexos da sua história. Nos dias subsequentes à reeleição da presidente Dilma Rousseff em 2014, por uma pequena vantagem de votos, o candidato tucano Aécio Neves (PSDB-MG) pediu ao TSE auditoria para verificar ‘lisura’ da eleição e prometeu oposição “incansável e intransigente”.
Em 2 de dezembro de 2015, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) abre o processo de impeachment de Dilma Rousseff a partir da aceitação de uma denúncia de cometimento de “crime de responsabilidade fiscal”, alegando-se responsabilidade da presidente na prática de “pedaladas fiscais”. O pedido foi apresentado por Hélio Bicudo e pelos advogados Miguel Reale Júnior e Janaina Paschoal (eleita deputada estadual em São Paulo pelo PSL no ano passado sendo a mais votada da história do país).
O documentário Tchau, Querida foi produzido pela rede de coletivos Jornalistas Livres e é dirigido por Gustavo Aranda e Vinícius Segalla. Usando a linguagem típica do cinema direto, o longa acompanha os quatro dias que marcaram as votações no Congresso que afastaram a presidente, visitando acampamentos, eventos e manifestações na capital federal, e as próprias votações, contra e a favor do impeachment.
Com a câmera na mão, os diretores caminham entre as pessoas perguntando o motivo delas irem até Brasília para assistir à votação e suas expectativas sobre o imbróglio que deixaria cicatrizes profundas na vida política brasileira. De um lado, um grupo de pessoas autodenominados “patriotas” usa as cores verde e amarelo da bandeira brasileira e tem como principal pauta derrubar o PT, impedir a “venezuelização” do Brasil e o combate à corrupção.
O testemunho desses personagens excêntricos são verdadeiras preciosidades, embora eles sejam figuras tradicionais nas famílias brasileiras: o tio do pavê que canta o Hino da Independência (completamente errado) para expressar o seu patriotismo; a tia mascarada que se sente representada pelo ex-juiz Sergio Moro, pois “se não fosse a sua coragem nada disso estaria acontecendo”; a tia estricnada que deseja a prisão de Lula, pois “se ele ganhar as eleições de 2018 aí será o socialismo aberto”; as primas ricas que foram conferir a saída da Dilma do Palácio do Planalto, mas que acabam afugentadas pelas palavras de ordem “luta contra a corrupção".
Destaque para o depoimento do viking “cara pintada” brasileiro que deseja a “união dos clãs” pró-impeachment e a favor da intervenção militar; do típico “cidadão de bem” que confessa que mataria Lula “se tivesse a oportunidade certa e sem flagrante”; da Gracinha Felix, uma senhora vestida em roupa no padrão do Exército Brasileiro, que afirma que “tem que tá todo mundo preparado para o que vier: pra confronto, se tiver confronto. Pode acontecer qualquer coisa. Mas a nossa intenção, de patriota, é salvar a pátria, é resgatar o Brasil e a democracia” e da mulher que fala após Gracinha, vestida dos pés à cabeça em roupa camuflada e com a inscrição SO (de suboficial) Kátia na blusa: “Só as Forças Armadas é quem vai conseguir colocar ordem nesse país. Não existe nenhuma outra instituição, nenhum outro partido político, não existe nada que consiga resolver que não seja através das Forças Armadas”.
Do outro lado desse momento da história brasileira estão os “vermelhos”: integrantes de movimentos sociais como o MST, membros da CUT, indígenas, pessoas que foram as primeiras de suas famílias a concluir o Ensino Superior durante os governos do PT, estudantes, professores, entre outros. A pauta é a luta por uma democracia efetiva – na qual a vontade do povo, decidida nas urnas, seja soberana e respeitada – e inclusiva – com justiça social, baseada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva.
Tchau, Querida seleciona com muita sensibilidade as personagens principais dessa trama política: os populares, que revelam o abismo entre os discursos que cristalizam a divisão política que tomou conta do país. No carro de som dos “patriotas” é dito “#VemPraRua é a maior arquibancada do Brasil: pode vir que a festa é sua!”, eles mercantilizam bonecos infláveis do ex-presidente Lula com roupa de presidiário durante as manifestações na Esplanada dos Ministérios, se alimentam nos food trucks ao som de Let’s Go to the Park, de John Legend, e entoam “Vou mandar o PT para Cuba ou morrer pelo Brasil”. Também é possível identificar a presença do slogan “Brasil e Deus acima de tudo” parecido com o que foi usado por Jair Bolsonaro na campanha de 2018.
No grupo contra o impeachment é possível perceber uma organização de forma coletiva para almoçar, eles compartilham a área com internet para realizar as transmissões ao vivo sobre o clima político na capital federal e cantam: “Essa luta é nossa, essa luta é do povo. É só lutando que se constrói um Brasil novo” ou “Não me engana mais, não me engana mais. Sabemos que a Rede Globo quer vender a Petrobrás”. As diferenças político-ideológicas expressas nos discursos e na maneira de agir das partes atinge o seu ápice ao som de A Raça Humana, de Gilberto Gil, enquanto são mostradas imagens dos manifestantes se encaminhando para acompanhar a votação da Câmara dos Deputados. Os versos de A Raça Humana realçam a luz e o pus, a beleza e a podridão da nossa espécie, assim como faz o documentário de Gustavo Aranda e Vinícius Segalla.
Ao fim e ao cabo da votação do impeachment, o caráter “político” do processo prevaleceu grandemente sobre o caráter “jurídico”. No dia 17 de abril de 2016, por 367 votos favoráveis e 137 contrários, além de 7 abstenções e 2 ausências, a Câmara dos Deputados aprovou o impeachment de Dilma Rousseff em uma sessão assombrosa. Em 12 de maio, a presidente da República foi afastada e não voltou mais ao cargo. A chamada mídia tradicional (ou corporativa) teve um papel fundamental nesse processo: “A mídia está mostrando o que ela quer para criar uma onda de opinião que não mostre isso aqui. Que não mostre que o povo está resistindo. Que mostre que a disputa já está perdida, que a vitória já é deles. É uma linha editorial bem traçada e a gente está tentando fazer o contraponto”, afirma uma das manifestantes.
O título do documentário faz referência à expressão usada pelo ex-presidente Lula durante uma conversa telefônica com a presidente Dilma que foi grampeada e divulgada ilegalmente por Sergio Moro, na época juiz federal da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba. Tchau, Querida é uma declaração de amor à democracia e conseguiu capturar o espírito do tempo no Brasil: um país no qual uma parte da população se despede com pesar de um período em que se viveu uma democracia de direito enquanto outra menoscaba a queda de uma presidente honesta eleita democraticamente e defende a prisão de um ex-presidente que durante o seu governo ampliou as políticas públicas para os mais pobres, demonstrando não terem absorvido o conceito de soberania popular.
Tchau, Querida é uma obra indispensável para quem deseja conhecer melhor as peculiaridades da história política do Brasil contemporâneo, mas sob a perspectiva popular. Ao lado de Democracia em Vertigem, O Processo e Excelentíssimos, o documentário de Gustavo Aranda e Vinícius Segalla é um registro antropológico valioso que ajuda a entender melhor a situação em que nos encontramos. Tchau, Querida mostra o preâmbulo para a possibilidade de redução de direitos dos mais humildes, a sanha de destruir o patrimônio do povo brasileiro por meio das privatizações e a chegada da era do cinismo, com pessoas que revelam descaso pelas convenções sociais e pela moral vigente, e indivíduos que se orgulham da imprudência, da desfaçatez e da insensibilidade.
Publicado originalmente no blog Cinema Transcendental em 26.7.2019.
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