Rio em Chamas
Direção: Daniel Caetano, Eduardo Souza Lima, Vinícius Reis, Cavi Borges, Diego Felipe Souza, Luiz Claudio Lima, Ana Costa Ribeiro, Ricardo Rodrigues, Vítor Gracciano, Luiz Giban, Clara Linhart e André Sampaio (2014)
Tentando encontrar um cinema vândalo, por Filipe Furtado
Um clipão dos protestos de 2013/14, por Carlos Alberto Mattos
Tentando encontrar um cinema vândalo
por Filipe Furtado
Rio em Chamas se anuncia como um filme-manifestação, e parte da sua força surge justamente deste gesto inicial. Organizado pelo cineasta e pesquisador Daniel Caetano e contando com a colaboração de vários nomes do cinema independente carioca, o filme busca realizar um mergulho nos eventos que marcaram o Rio de Janeiro no último ano. É um filme de momento, num sentido que o cinema brasileiro vem encontrando grandes dificuldades de produzir na última década, marcada por uma inquietação e desejo de confronto. Ano passado realizamos nossa pauta “Com violência” sobre as dificuldades do cinema brasileiro de buscar uma forma para o dissenso à época das mesmas manifestações que impulsionam Rio em Chamas. De certa forma, o filme busca justamente interromper este consenso, encontrar imagens e representações alternativas para ele.
Rio em Chamas deseja dar um passo a mais em relação às narrativas panela de pressão (O Som ao Redor, Riocorrente) que passaram a dar o tom do cinema político brasileiro recente, e seu tom tateante tem muita relação com a dificuldade de encontrar uma encenação que localize um tom certo para este novo momento. Há um desejo de buscar uma imagem de dissenso, mas este desejo não é acompanhado de uma proposta estética que consiga dar conta deste momento.
O filme que primeiro vem à memória diante de Rio em Chamas é Longe do Vietnã, organizado por Chris Marker com vários cineastas franceses em 1967. Tanto no filme francês como no brasileiro, a estrutura é a mesma, com episódios sem identificação sendo articulados com material direto do confronto (colaborações de cineastas locais lá; material captado nas manifestações pelos cinegrafistas Tamur Aimara e Guilherme Fernandez aqui) e uma forma final que sugere uma espécie de filme-revista sobre as questões que dominam o confronto, mais do que um filme em episódios.
O filme de Marker tinha um título muito justo, já que o divórcio entre o material vietnamita e o francês era claro: tratava-se de um filme feito longe do Vietnã, um esforço de um grupo de cineastas europeus engajados em se articularem a respeito de uma questão que sentiam muito, mas que permanecia distante. É curioso notar como esta mesma distância é visível em Rio em Chamas, entre o material de Aimara e Fernandez e os episódios que o grupo de cineastas busca realizar para organizar um olhar sobre o assunto. O material dos cinegrafistas, pouco mediado para além da organização da montagem final de Caetano, tem uma força de imersão e um desejo de agir contra a representação do olhar que a grande mídia lançou sobre o evento. Isso lhe garante uma potência política e estética que o resto do filme só alcança em momentos isolados.
Se no filme de Marker esta crise é algo colocado em questão, em Rio em Chamas esta distância é somente um dado trágico da nossa dificuldade de chegar até as coisas, resultado de uma crença de que o cinema brasileiro (mas não somente ele) padece sempre do mal de carregar consigo uma necessidade de interpretação (e não de representação) de eventos como as manifestações do ano passado. Sem querer, procede-se numa direção redutora que vai contra o projeto politico do filme. Nos seus piores momentos, Rio em Chamas vai pouco além de articular uma versão cinematográfica de uma hashtag do tipo #tamojunto; seu desejo de ir à rua é saudável, mas também um claro limite. Cinema é mais do que a conspiração entre amigos à qual o filme frequentemente se reduz.
Não deixa de ser útil pensarmos no contraste entre Rio em Chamas e Desassossego – Filme das Maravilhas (2010), outro filme em episódios (organizado por Felipe Bragança e Marina Meliande) no qual um grupo de jovens cineastas buscava fabular sobre o Rio de Janeiro, e no qual a homogeneização do olhar apontava justamente para um apaziguamento de questões, um desejo de filtrar o Rio a partir de uma sensibilidade especifica. Em Rio em Chamas há também uma homogeneização de olhar (o filme não deixa de dar sequência ao desejo de diluição da figura do autor que guiava o coletivo anterior de Caetano, Conceição – Autor Bom é Autor Morto, de 2007), mas de um olhar para o qual fabular para o Rio só pode surgir a partir de um filme de desgraças. Os quatro anos que separam Desassossego e Rio em Chamas são justamente os quatro anos do governo Dilma, com o impacto que ele teve nas expectativas de setores da nossa esquerda. É uma mudança que faz o imaginário saltar de um cinema de maravilhas a um cinema vândalo.
O material de Aimara e Fernandez revela uma inegável força como peça de agitprop, mas também reforça como este desejo de meter a mão no vespeiro e procurar interpretar uma série de problemas e inquietações por parte de Rio em Chamas vem acompanhado de uma dificuldade muito grande de completar este salto e permitir que eles reverberem como cinema. É muito sintomático que boa parte dos episódios mais frágeis do filme sejam aqueles que tentem lidar diretamente com as manifestações, já que a comparação com o material de Aimara e Fernandez reforça suas fragilidades. Do mergulho dentro do movimento permitido pelo trabalho dos cinegrafistas para a construção de um discurso, há um caminho que o filme somente tateia, e no qual fracassa repetidas vezes.
Os três episódios dirigidos por Daniel Caetano são bem úteis para pensarmos como o filme busca representar este confronto. Assunção – entre os Black Blocs e os Block Busters mostra uma conversa entre quatro amigos que repassam os vários conflitos que levaram e se estenderam a partir das manifestações; Cezar e Marcus (co-dirigido por Vinicius Reis) mostra uma discussão entre Cezar Migliorin e Marcus Faustini; e Guilherme e Sergio (co-direção do Cavi Borges) mostra outro diálogo – desta vez mais informal, à mesa de bar – sobre o Rio. Em comum, estas três sequências têm justamente um desejo de encontrar uma representação casual que lhes tire um peso excessivo. Cada um à sua maneira, trata-se de episódios didáticos (o primeiro, em especial, tem uma clara função de contextualizar o filme), e o trabalho dos cineastas é todo no sentido de lhes garantir uma fluência e jogar contra o peso deste didatismo, algo reforçado pela opção de separar a conversa entre Migliorin e Faustini em duas partes, como se tivesse consciência de que o discurso ali fosse maçante demais num bloco só.
Guilherme e Sergio é o mais bem sucedido deles justamente porque o tom casual lhe chega com maior facilidade – algo que as opções de encenação de Caetano (sobretudo no trabalho de câmera) luta para impor sobre os discursos das duas outras sequências. Nos demais, há alguns achados (o uso de imagens de arquivo em Assunção é bastante inspirado), mas tem-se sempre a impressão de que menos se busca uma representação de um estado das coisas do que serve-se a questões de forma subserviente. É um problema que se expande ao longo da grande maioria do filme, que em poucos trechos escapa de ser engolido pelas manifestações e se afogar nas suas ambições de representá-la.
Em outros episódios, busca-se um confronto mais direto, como em Deneva: uma crônica da Terraplana, de Eduardo Souza Lima, pelo viés do humor; ou Educação em Chamas, de Luiz Claudio Lima e Diego Felipe Souza, pela tentativa de imersão mais direta. Há espaço para tentativas de jornalismo independente, como Fernandão Vive, de Ricardo Rodrigues e Vitor Gracciano, que reforçam o desejo do filme de soar como um cinejornal e servir de contraponto para a representação das manifestações na grande mídia.
Rio em Chamas é mais forte justamente quando a ideia de representação vai ao primeiro plano, como em Capa Vândala, de Clara Linhart, no qual parte-se de uma capa de O Globo e das leituras que as pessoas fazem dela para se pôr em crise a forma como se construiu a imagem dos manifestantes. É quando o desejo de confronto do filme assume mais diretamente que o que está em jogo aqui é uma batalha de olhares, que a maior contribuição de Rio em Chamas é justamente o gesto de interromper o olhar oficial, de propor outra representação possível, mesmo sem jamais chegar a ela.
O episódio de Linhart é o penúltimo do filme, e seu posicionamento depois de muitas tentativas de se representar confronto e revolta não é acidental. Assim como não é o de encerrar o filme com KD, de André Sampaio. Trata-se de uma quebra completa com o imaginário audiovisual que Rio em Chamas urdia até ali. É o único episódio que abandona por completo a raiz documental e se entrega por inteiro à fabulação; abandona-se também a cidade e o confronto direto com a polícia e o governo, reimaginando-o a partir do alegórico. O próprio Sampaio interpreta um homem a caminhar pela paisagem rural à procura de algo. Quando tem seu único encontro, pergunta por Amarildo até mais à frente encontrar um esqueleto com um cartaz com o dizer “não tenho nem o da passagem” e carrega-o até desaparecer, enquanto corta um rio.
Os planos duros e secos de Sampaio encontram muita força nos vários elementos de cena: o carro queimado, a estrada de terra deserta, a cerca, o caminho estreito, as águas do rio, e mesmo o próprio esqueleto e seu artificialismo de objeto de cena. Na encenação alegórica do diretor, voltamos a uma história mais ampla (e também a história do cinema brasileiro), e localiza-se nos confrontos do Rio um caráter mítico mais abrangente (algo que o uso de imagens de arquivo em Assunção ameaçava sugerir): estão ali todas as violências oficiais do passado, mas também todas aquelas que ainda acontecerão.
Rio em Chamas, finalmente, encontra ali, depois de muito tatear, uma forma de dar conta do seu confronto, de fazer valer seu gesto inicial. Existe, afinal, uma batalha simbólica a se vencer, e uma à qual o cinema brasileiro larga com notável atraso. É uma tarefa impossível, e o filme serve como relato da distância de que o cinema brasileiro se encontra de realmente começá-la, de poder se livrar tanto de uma subserviência a outros olhares da nossa representação midiática, como da nossa herança intelectual que procede na sua crença uspiana de interpretar o país. O filme termina como um testemunho da nossa imensa dificuldade de articular estas questões, de encontrar caminhos para lhe dar uma forma, e permitir que elas respirem como cinema.
>> Publicado originalmente na Revista Cinética em 4.10.2014.
Leia também:
Um clipão dos protestos de 2013/14, por Carlos Alberto Mattos