A deriva política em O Processo
por João Victor Nóbrega
O Processo (2018), de Maria Augusta Ramos, faz o difícil exercício de ser um documentário estritamente observacional. Neste filme a diretora abre mão mesmo das reencenações que utilizou em Justiça (2007) e Juízo (2007). Essa escolha adiciona uma camada ao título. Vê-se que a noção de “processo” neste filme diz respeito não apenas ao objeto de que trata, isto é, o processo de Impeachment da ex-presidente Dilma Roussef. “Processo” nesse caso diz respeito ao modo como o filme se estrutura, à própria captação audiovisual do objeto, pois a observação estrita transforma tudo em processo, uma vez que aquilo de que se fala não é um assunto passado para o qual se olha, o objeto, na verdade, desenrola-se diante da câmera.
Essa opção de Maria Augusta Ramos lhe impõe pelo menos duas dificuldades. A primeira é manipular a imensa quantidade de material gerado. (E isso porque Maria Augusta não teve acesso aos bastidores da acusação do Impeachment como gostaria). A segunda dificuldade está diretamente ligada à primeira, mais do que manipular o material como um todo, torna-se difícil estabelecer um eixo narrativo, ou ao menos uma espinha dorsal que sustente o filme. De fato, em suas quase 3 horas de duração, o filme perde o fio da meada por mais de uma vez, detendo-se em planos que se alongam sem nenhuma justificativa estética ou narrativa.
O Processo realmente não segue a cartilha de um documentário clássico como já se explicitou aqui. Acontece que a opção por enfocar a equipe de defesa de Dilma Roussef, encabeçada pelo ex-Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, torna a saga da defesa em espinha dorsal do filme. Mas mesmo essa saga perde o ritmo algumas vezes, como quando, num longo plano, observamos Cardozo falando ao celular sem que possamos, de todo, identificar o assunto de que trata. Além disso, o caráter performativo do rito político-jurídico gera uma sensação de eterno retorno. Os argumentos da acusação e da defesa parecem, em essência, sempre os mesmos. E são, pois ambos os lados, como se admite no filme, estão sempre tentando ganhar tempo.
É verdade que essa obsessão por captar o todo do processo por vezes torna-se esvaziada, outras vezes, porém, essa mesma obsessão permite flagrar contradições muito significativas, de modo a pintar um quadro político ainda mais desolador do que ele já se mostrava. Se em determinados momentos é vetado ao espectador entender um diálogo ao telefone, não é raro que os próprios envolvidos no processo soem completamente desorientados. A certa altura, a senadora Vanessa Grazziotin pergunta à senadora Gleisi Hoffman onde fica a Câmara dos Deputados. Gleisi Hoffmann, porém, confunde-se ao responder. Afinal, essa confusão é resultado da clausura enfrentada pela defesa durante um processo tão longo e desgastante, ou mais do que isso, ela é indício do desgaste de um modelo político? Provavelmente, as duas opções são verdadeiras.
Em mais de um momento, personagens como Cardozo, Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias demonstram saber que constituem um modelo político que vinha ruindo há algum tempo. Mais tarde, o petista histórico Gilberto Carvalho faz uma severa e certeira autocrítica acerca da conduta de seu partido, apontando cada um dos erros que os levaram àquele momento. Não nos é dado saber como suas palavras repercutem em seus companheiros, mas elas reverberam na sala de cinema e revelam a deriva política absoluta em que nos encontramos.
Por um lado a desorientação e a iminente ruína petista põem fim a um sonho que a esquerda alimentou pelo menos desde as greves sindicais do ABC no fim da década de 1970. Por outro, a direita brasileira, encarnada pelos esgares mímicos dos votos dos deputados a favor do impeachment, pela frieza patética de Cunha e pela afetação desenfreada de Janaína Paschoal, apresenta-se como a caricatura mais acabada de si mesma. Ainda assim, é preciso dizer, talvez tivesse sido necessário termos levado mais a sério a frieza patética de Cunha e de outros emedebistas.
Enfim, O Processo dispõe diante do público um quadro quase apocalíptico que termina na convulsiva fumaça gerada pelo confronto entre manifestantes e policiais. Fica claro que, de maneira voluntária ou não, o filme registra mais a consolidação de uma deriva política do que todas as facetas do processo jurídico que levou ao impeachment de Dilma Roussef. A quase ausência de Dilma no filme, a despeito de ela estampar todos os cartazes, é indício disso. A ex-presidente motiva cada gesto registrado, mas poucas vezes é sujeito de um gesto. Poucas vezes a vemos nos bastidores, vemos apenas seus discursos e seu depoimento durante o processo. A escolha de Maria Ramos por transformar a Praça dos Três Poderes e, sobretudo o Senado, no grande palco das ações, também reforça a sensação de ruína e deriva. Em mais de um plano, em geral carregados de rigor formal, podemos observar a arquitetura de Niemeyer por um olhar que lembra o fotógrafo surrealista Atget* e seus espaços vazios. O exemplo mais significativo disso é o plano em que observamos um cachorro passear por um ermo Palácio da Alvorada. Uma cena bem ao gosto dos filmes pós-apocalípticos.
O “processo” do título evoca então mais outro processo, o de Kafka. A formalidade do direito (insistentemente atacada por Cardozo) gera situações insólitas que resultam em aporias, verdadeiros becos sem saída. Por isso uma imagem de apelo surrealista como a do cachorro resume tão bem a deriva que O Processo parece querer documentar, uma vez que se trata de uma imagem do fim (dos tempos) latente ainda no decorrer do processo. A escolha por apenas observar constata mais do que investiga a vocação para a catástrofe que o Brasil possui e que se demonstrou tão verdadeira nesses dias de greve.
*Eugène Atget (1857 - 1927) foi um fotógrafo precursor do surrealismo conhecido principalmente por suas fotos dos restos da velha Paris, anteriores às reformas promovidas pelo Barão de Haussmann e por Napoleão III.
>> Publicado originalmente no site Mnemocine em 30.5.2018.
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