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Como introduzir a justiça nas imagens?
por Andréa França e Patrícia Machado

Quando Maria Augusta Ramos opta, em O Processo, pela ausência de entrevistas, narração, trilha sonora e qualquer indício que denuncie a presença da câmera e equipe na imagem, sua motivação é tratar o processo do impeachment da ex-presidente sem metáfora, tomando-o de certo modo ao pé da letra, fisicamente. Interessam as condições mesmas do espetáculo que estamos vendo, seu mecanismo desvelado através dos corpos de políticos em cena – o julgamento no Senado, as reuniões em gabinetes, as conversas em carros oficiais, os corredores do Congresso Nacional. Assim, o que era caos e excesso de notícias veiculados pela TV (“a maior fraude da história do país”, “a maior corrupção política”) passa a adquirir uma dimensão de legibilidade e de fisicalidade. Saímos da narrativa da monumentalidade da crise, difundida pela mídia de massa, para adentrarmos o terreno da realidade material dos corpos, dos agentes da justiça e da política que, durante cinco meses, circularam no Senado Federal.

O Processo mostra, como em outros filmes da diretora, que as instituições da justiça, da família, do cinema, os partidos políticos, as sociedades, são narrativas compostas de mise-en-scènes (teatros sociais, teatros de poder) que aprisionam a todos (como aponta Andréa França em “The Gesture of Waiting and the loneliness of the bodies in Maria Ramos’s films”, no livro On Women’s Films). Se em O Processo, Ramos “não filma tanto a pessoa como o ritual da instituição” (Jean-Claude Bernardet, “Maria Augusta e Petra Costa: enquadramento e política”, 2019) é justamente porque lhe interessa tocar a substância do acontecimento do impeachment: o que eram tais acusações afinal? A presidente estava sendo acusada do quê exatamente? A carência de imagens da ex-presidente, ao longo do filme, traz outra camada de sentido. Não vemos Dilma solitária ou mesmo rodeada de assessores e familiares enquanto espera pelo veredicto. Tal ausência acaba transformando-a menos em vítima, submetida ao tempo do processo, do que numa personagem majestosa a pairar acima dos demais atores da cena política. Quando inquirida no processo, diz altiva: “da outra vez durou vinte anos porque não tinha internet, desta vez vai durar menos”, referindo-se à ditadura.

O espectador de um processo filmado é submetido às escolhas do/a cineasta, de seus enquadramentos, de montagem. Não há câmera objetiva. Mas certamente poderíamos falar o mesmo de um julgamento da justiça: o que é “objetivo”? Seria no mínimo inocência acreditar que haveria uma “verdade” na dinâmica do tribunal que se revelaria por graça divina. Oras, o visível não é algo dado e sim construído pelos homens. As encenações existem – tanto as do cinema como as da Justiça (o processo jurídico e midiático da Lava Jato deixa isso claro). Filmes como Close Up (Abbas Kiarostami, 1990), Délits Flagrants (Raymond Depardon, 1994), A Tênue Linha da Morte (Errol Morris, 1988), Juízo (Maria Augusta Ramos, 2007), para citar alguns, dão prova desse teatro da justiça. O documentarista Jean-Louis Comolli, numa entrevista com a jurista francesa Agnès Tricoire, diz que acreditar na “inocência” da Justiça e na “objetividade” do documentário é preferir o lugar confortável das verdades prontas. Como se a justiça não pudesse ser discutível (“A propos de procès filmés”, em Images Documentaires n. 54, 2015).

Se em O Processo cada escolha da cineasta coloca em evidência “o ritual político, repetitivo por natureza, mesmo sintetizado pela edição” (Eduardo Escorel, “O Processo – observação em crise”, 2018) é porque há algo importante a ser extraído da repetição e da observação do ritual exaustivo. Diante das manobras jurídicas, políticas e do gigantesco aparato midiático que sustentou a narrativa da crise e da corrupção durante o governo do PT, o filme restitui pedagogicamente o equilíbrio perdido quando se desembaraça destes excessos e se concentra na materialidade do processo – a cena, os corpos e sua disposição, as falas, os gestos e a espacialidade das salas e gabinetes. Como fazer para introduzir a justiça nas imagens? Essa é a pergunta que move o filme. Em um período onde o discurso repressivo triunfa, vale perguntar se tornar “transparente” a falta de equilíbrio nos direitos da defesa dentro da justiça penal dá conta da necessidade de novas narrativas sobre o vazio de perspectivas.

Ao lançar o filme em circuito comercial em 2018, antes das eleições presidenciais, Maria Augusta Ramos entendeu a urgência do momento histórico. Era fundamental estrear rapidamente para que pudesse participar da disputa pelas narrativas do impeachment. Lançado em fevereiro de 2018, no Festival de Berlim e montado com a fundamental colaboração de Karen Akerman, as 450 horas de material bruto foram depuradas até chegar ao filme.

>> Publicado originalmente na revista Cinética em 10.7.2019 como parte do artigo Imagens que assombram – o efeito impeachment no cinema documental.

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